100 dias sem chuva

Thiago Cardoso
4 min readOct 24, 2020
Rene Burri — Landscape, Brasilia, 1960

Por detrás do prédio que margeia a L2, na altura da comercial da 406/407 norte, surge finalmente o GRANDE CIRCULAR, aparentemente vazio, na primeira pista da esquerda. A placa no canto inferior esquerdo do painel grita o preço inacreditável da passagem, R$ 3,00. Em um movimento sincronizado, uma revoada de braços direitos se erguem, entrando no território escaldante do sol que banha toda a região ao redor da parada.

Uma grupo de adolescentes, com camisas cinzas gravadas com a sigla CEAN nas costas, trocam risadas e leves tapas e pontapés, ao lado de um senhor que não cansa de olhar para o lado, sentado em um banquinho de madeira. À sua frente, uma mesa repleta de balas e doces e cigarros derrete sob o calor seco sufocante das 15:26. 15:26 é a hora marcada pelo painel digital instalado em um ponto logo a frente, entre a pista que vai para o fim da asa norte e a que vem em direção à rodoviária, onde em um ritmo constante que pontua o início da tarde aparece inscrito em pontos de led vermelho digital a temperatura de 36º, sempre mais alta no painel do que a máxima anunciada no rádio pela manhã. Cada dia sem chuva parece mais quente e seco que o dia anterior, até chegar ao último e insuportável dia que precede o temporal que anunciará o fim da seca e do imenso céu azul manchado por esparsas névoas escuras de fumaça. Hoje faz 100 dias sem chuva.

O baú começa a parar, seguido pelo barulho que os baús fazem quando param, e um amontoado de 7 ou 8 pessoas caminham em direção ao lugar onde calculam que a porta se abrirá e todos entrarão com um misto de educação e olhares de gentileza, mas não sem se apressar para educadamente colocar-se a frente do outro e não correr o risco de ficar de pé. O baú estava mesmo quase vazio e o preço da passagem era mesmo R$ 3,00 que, puta que pariu, R$ 3,00, sendo que quando chegar na sul ainda pegará o metro que são mais R$ 4,00.

A experiência de R$ 3,00 passa em menos de 12 minutos, que pelo menos oferece a visão da Catedral e do Museu Nacional e da Torre de Tv parcialmente escondida pela rodoviária e da Esplanada, onde tudo arde sob o mesmo céu implacável e o mesmo sol indiferente às gotas de suor que escorrem sob sua testa quando desce do baú e segue pela grama morta que há muito deixou de ser verde em direção à estação de metrô da 102. Os carros, parados nos estacionamentos anexos aos prédios do Setor de Autarquias, refletem os raios brancos de luz que fragmentam-se em estilhaços fazendo a cidade brilhar e sofrer e sentir a sede que é cúmplice da senhora que vende água de coco em um pequeno carrinho verde, protegido por um guarda sol ainda mais verde e reluzente. A garrafinha de 300 ml custa R$ 5,00 e a de 500 custa R$ 7,00, o que deixa qualquer um em uma dúvida insolúvel e que certamente levará a um arrependimento instantâneo, mas me vê a de 500 por favor, essa mesmo, que custa R$ 7,00 e vai ser um pouco mais que o suficiente, mas pelo menos não vai me deixar passando vontade.

Apesar de tudo sabe que Brasília é foda e que não conseguiria viver sem o calor escaldante e sem a seca de 100 dias e sem o GRANDE CIRCULAR ou os setores bancários, comercias e de autarquias, e as superquadras comercias e residências, e a Feira e QI`s, QE`s e banquinhas do Guará, e o mercado do bandeirante ou os barzinhos da praça do DI. Caminha em direção ao metrô sem conseguir deixar de notar o barulho dos passáros que ressoam pela residencial e das crianças que jogam bola descalças na quadra de concreto em frente à escola classe. Principalmente, não consegue deixar de notar o azul imenso que tudo invade e tudo ocupa em qualquer lugar que se esteja na cidade, disputando seu protagonismo apenas com o verde cansado da copa das árvores e o concreto cinza que emoldura as entrequadras.

O metrô está logo ali, cruzando esse quadradão de grama morta, recortada por caminhos de terra vermelha. Sob a marquise de concreto, algumas pessoas esperam os ônibus que saem em direção à norte, sem notar ou já cansadas de notar o concretismo que as rodeia. Já dentro do metro, um caminho escuro e porque não também de concreto leva até os guichês de passagem onde outra placa, colocada no canto inferior esquerdo da mesa repleta de moedas e cartões, grita o preço ainda mais inacreditável de R$ 4,00. O atendente olha com pena ou tédio ou a mesma indiferença fria que olha para todos que pagam os R$ 4,00 da passagem, enquanto eu procuro na carteira pelo dinheiro, até descobrir que falta apenas R$ 2,00 ou sobram 200ml de água de côco para completar os R$ 4,00 e pegar o metrô em direção à Águas Claras.

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