Minha loja ainda está em obras

Thiago Cardoso
4 min readFeb 9, 2024

Hoje entraram duas mulheres na Galeria América. As duas na faixa dos 50 anos. A primeira, bem arrumada, em um estilo um pouco Jardins um pouco Pinheiros, usava um salto/sandália plataforma, carregava a bolsa com o antebraço e tinha o cabelo seco, em um degrade metálico que ia do louro a um branco acinzentado. Seu cabelo parecia ter sido seco em uma secadora de grãos, pois realmente estava muito seco, desengranhado, nesse estilo que acredito estar na moda, pois também minha esposa usa. Sua cabeça parecia estar sempre erguida, virada para uma posição a coisa entre 0 e 45º à sua direita. Levemente inclinada para cima, como quem ao se deparar com uma pintura olha obstinadamente para a legenda que se encontra na margem superior direita da tela. E ali fica. Até partir para a próxima pintura e fixar seu olhar na próxima legenda.

A segunda carregava um saco plástico, do qual saia um desses mapas que se vendem em bancas ou papelarias. Era mais alta, usava um estilo de roupa que não tinha como não lembrar uma professora universitária de um curso de Letras ou História. Digo isso, mas poderia ser também servidora pública, talvez arquiteta, mas nunca uma médica, advogada ou uma daquelas pessoas que fazem alguma coisa para uma grande empresa com sede na Berrini ou na Faria Lima e portanto nunca estariam batendo perna na Rua Augusta às 5 da tarde de uma quinta-feira. Ao bater os olhos na Galeria América se empolga por alguns instantes:

“Olha! uma *galeria*”

O gosto por galerias me parece ser uma condição que afeta um tipo específico de gente. Creio ter uma correlação alta com quem gosta do velho, da literatura e da ideia de tomar café expresso, mesmo tendo o café expresso um gosto muito inferior ao café coado. Gente como eu, que adora galerias, mas sente certa tristeza quando vê de longe, ou, no pior dos casos, conhece, outra pessoa que também gosta.

A partir daí começa aquela irritante, mas nada forçada, veneração por algo que a princípio parece ter pouco valor, mas que para a mente iluminada que a encontrou é uma jóia rara. São esses os curadores de oportunidades estéticas. Digo assim, sem preocupação em me passar por uma pessoa maldosa, pois sou eu também um desses tipos terríveis. Por algum motivo carrego em mim a certeza que tenho um tino para tendências. No caso das tendências imobiliárias, acredito no meu faro mais no que do próprio prefeito e seus amigos empreiteros que o elegem.

Quando vi esta Galeria pela primeira vez, ainda no Google Maps após chegar até mim um anúncio de locação no Insta, tive certeza que meu ponto seria aqui. R$ 800 reais de aluguel, R$ 1500 com tudo, uma loja com um mesanino e um bom banheiro na parte de cima, conservada original, com uma escada circular de ferro, dois vidros de 1.60 por 1.80 cada e uma porta com duas simpáticas janelinhas, cujas bordas parecem folheadas a ouro por uma tinta automotiva amarelo-mostarda ou algo do tipo. No centro do piso de cimento queimado, uma espécie de adorno circular feito com pastilhas coloridas dá um toque mágico para a loja. Para melhorar, uma ex-sapataria, cujo ex-dono, um senhor de mais de 80 anos, foi compulsoriamente aposentado por seu filho, que um belo dia tirou todas as coisas e mandou para algum lugar que nem o Zè, zelador da galeria e informante geral, sabe onde.

Meu vô tinha uma pequena oficina de rádio e tornearia no Mercado Novo de BH, portanto esses coisas de velhos e lojas me pegam muito. Talvez seja inclusive o principal motivo de eu ser mais um desses galeristas. Percebo que a principal diferença entre mim e a mulher é que eu sou um entusista que chegou ao ponto de alugar uma loja em uma galeria decadente, apesar de ser sabidamente um péssimo lugar para montar um comércio. Enfim.

Voltando para elas, as amigas, enquanto a entusiasta por galerias aprofundava sua inspeção, a outra claramente estava aqui apenas por educação. São daquelas amizades muito diferentes, que ainda andam juntas apenas porque possuem a devoção por algo em comum ou porque possuem o mesmo ódio por uma pessoa que passou por suas vidas.

Não consigo deixar de evitar a expectativa de saber se as duas — ou qual das duas — irão parar ao passar na porta da minha loja e se voltar para esquerda, para o interior da loja, admirando com um olhar de descoberta o charme da tinta de piso Sherwin Wlliams azul marinho com a qual pintei de forma tão porca todas as superfícieis interiores e a camada amarelo-mofada de reboco antigo que expus desnecessariamente ao tirar a tinta velha que se desprendeu da parede do fundo.

Não pararam. Nem uma, nem outra. Apenas seguiram. Pior que isso, pararam logo em seguida, na lojinha de produtos do Pará ao lado, que apesar de bem montada, não tem nada de especial. Senti uma certa tristeza e, em um mesmo gesto, abri o notebook para registrar esse relato. Olho para a tela por algum tempo. Consigo pensar apenas no que eu diria para a mulher, caso tivesse a oportunidade.

Minha loja, aquela ali, ainda está em obras, diria a ela com um olhar confiante, sem deixar de me dirigir também a sua amiga enfastiada.

Mas de fato esta galeria é um belo de um achado.

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