Onde está você meu velho amigo Tadeu?

Thiago Cardoso
24 min readApr 21, 2023
Minha única recordação com meu velho amigo Tadeu — Foto: Acervo pessoal

Nossa única memória

Na foto é possível ver Tadeu de pé, logo ao meu lado, atrás do que parece ser uma garrafa de whisky ou 51 e comendo um brigadeiro que havia roubado antes do meu parabéns. Na verdade talvez não estivesse comendo um brigadeiro roubado, mas apenas falando algo ou tentando tossir. Minha mãe, ao lado de Tadeu, carrega um prato de bolo. Não sei se para mim ou para o Tadeu, que assim, bem no centro da foto, parece ser o aniversariante ou um irmão mais velho e filho preferido.

Estavam alí eu, meus pais, minhas primas, meus avós e Tadeu. No rosto e nos olhos de Tadeu, por mais que procure, não consigo encontrar qualquer vestígio de inveja, sentimento mais ou menos comum entre crianças não aniversariantes. Meu amigo transparecia uma indiferença sincera. Talvez nem tanto por mim, mas por aquela festa de aniversário que não era sua.

Algo que me lembro bem de Tadeu era que ele comia muito e de tudo. Já eu era uma criança especialmente chata para comer. Minha dieta era baseada em miojo e salsicha da Mônica. Vez ou outra a salsicha era substituida por hambuguer da Mônica. Aos finais de semana em geral comia apenas nuggets da Mônica. Não sei como meus pais deixaram minha alimentação chegar nesse ponto de absoluta dependência aos produtos da Mônica. Cresci na década de 90. Apesar de realmente muita coisa ter mudado nos últimos 30 anos, já era bem sabido que coisas como o cigarro, cocaína e alimentos ultra processados não fazem bem para crianças em fase de crescimento. Como meus pais trabalhavam o dia inteiro, talvez não tinham muito tempo para pensar sobre isso. Ou quem sabe a Turma da Mônica dava alguma credibilidade para esses produtos que de outra forma não seriam comprados. Impossível saber.

Cresci doente, com crises mensais de amidaligte e doses periódicas de bezatacil. Isso até uns 10 anos, quando a homeopatia, ou talvez uma melhora na minha alimentação, diminuiu muito as crises constantes. Na verdade pode ter sido apenas a idade mesmo, um fortalecimento a força de um sistema imunológico burro, que depois de tanto perder para uma mesma bactéria, passou a derrotá-la vez ou outra. Escrevi que cresci doente, mas isso não é totalmente verdade. Apesar da dor de garganta constante nunca tive outros problemas mais graves. Nunca sofri um acidente realmente sério e até os 10 anos brinquei muito no bloco onde morava. O Tadeu morava no mesmo bloco que eu, no Guará, em Brasília. Não me lembro do Tadeu jogando bola, apesar ser o que o mais fazíamos no bloco. Penso hoje que talvez o Tadeu fosse uma daquelas crianças que os pais não deixam descer para brincar com os outros meninos, muito provalvemente por acreditar que todos não passam de marginais em formação. Minhas poucas lembranças com o Tadeu são jogando super nintendo em sua casa ou na minha. Nunca entre as outras crianças do bloco.

Tadeu se mudou cedo do Condomínio Sargento Wolf. Não me lembro em que ano, mas lembro que bem antes de mim. Não sei para onde ele foi e nem se nos despedimos. Me mudei para o bloco com cerca de 4 ou 5 anos e gradativamente fui fazendo amizade com as outras crianças que moravam alí, em geral um pouco mais velhas que eu. O Tadeu foi talvez meu primeiro amigo. Também foi o mais breve em minha memória. Por algum motivo que quem sabe esse relato me fará entender, também foi o amigo que hoje mais sinto saudade.

Quando o Tadeu se mudou creio que não senti falta. Na época eu já estava entrosado com outras crianças e o regime de liberdade condicional em que Tadeu vivia já não me interessava mais. Hoje, contudo, passo a sentir cada vez mais o apagamento gradual das poucas memórias com esse velho amigo que, com seu jeito indiferente e despreocupado, me trazem bons sentimentos.

Sargento Wolff a frente de sua tropa em sua última fotografia em vida — Foto: Acervo da Memória

O Sargento Wolf

Eu e Tadeu morávamos no Condomínio Sargento Wolf, na QI 25 do Guará II. Descobri recentemente que Sargento Wolff também foi um tenente do exército (futuramente promovido a Sargento) que foi com a Força Expedicionária Brasileira para a segunda guerra mundial. Essa decisão lhe custou a vida, assim como garantiu a homenagem do condomínio onde eu e Tadeu morávamos. Por uma infelicidade ou estratégia de marketing o segundo f de seu sobrenome foi esquecido, ficando apenas Sargento Wolf. Ironicamente Wolff é um sobrenome alemão, assim como eram os assassinos do sargento morto. Wolf também é lobo em inglês, sendo o nome do bairro originado do Lobo Guará, animal comum na região, o que me faz crer que a escolha pelo nome Sargento Wolf foi mesmo uma estratégia de marketing, unindo a homenagem ao héroi sargento à referência americanizada ao animal que batiza o bairro.

O Condomínio Sargento Wolf é na verdade quase um bairro com vida própria. É composto por cerca de 10 ou mais conjuntos, que são como mini condominios, todos com 3 blocos e uma quadra descoberta, divididos entre si por uma rua sem saída, que dá acesso à entrada do condomínio, e uma viela de passagem para a rua principal do Guará II.

Portão de entrada de um dos conjuntos do Sargento Wolf. Foto: Quinto Andar.

Assim como existia uma rivalidade entre os moradores do Guará I e II, havia uma rivalidade entre os moradores dos diferentes conjuntos do Sargento Wolf. Circulava uma lenda de que o conjunto 5 era o mais chique, onde moravam os meninos mais playboys e as meninas mais bonitas. O nível de riqueza de um conjunto caia conforme descrescia seu número. Eu morava no conjunto 1, onde ficavam os Blocos A, B e C. Mais especificamente no 6º andar do Bloco C, o que ao menos era um sinal de status dentro da hierarquia de riqueza de um conjunto em si.

Uma das formas comuns de demonstração de rivalidade entre as crianças dos diferentes conjuntos do Sargento Wolf era o Interblocos. o Interblocos era um campeonato de futebol onde as equipes de cada conjunto de blocos disputavam entre si em partidas mata-mata. Lembro que nosso conjunto sempre perdia e os meninos do último conjunto sempre ganhavam. Eu não tinha idade nem talento para jogar no time, mas me lembro que o nosso time era bem ruim. No último conjunto os meninos tinham um técnico, creio que o pai de algum deles que era professor de educação física. Eles tinham uniforme e faziam alongamento antes do jogo. Já o nosso time praticava com uma bola dente de leite de vôlei, que respondia mais à vontade do vento que a do jogador que a chutava. No nosso conjunto ninguém se dispunha a colocar uma boa bola para jogo porque muito certamente ela acabaria sendo roubada. A única forma de se evitar o roubo era ficar até o final de absolutamente todas as partidas e levá-la de volta para casa assim que o jogo acabasse, o que era impossível considerando que o maior interesse de todos que jogavam estava justamente em roubar a bola de seu dono e não em jogar bola. Não dáva para ganhar sempre uma prova de resistência contra 10 pessoas. Obviamente, também não dava também para acabar com o jogo de 10 crianças cuja principal diversão era o furto e levar a bola para casa. O melhor então era não ter bola, configurando o que na teoria econômica se chama tragédia dos comuns.

O Sargento Wolf melhorou bastante entre o ano que eu entrei e que saí de lá, assim como muitas outras coisas entre os anos 90 e 2000. Foi construído um salão de festas, que demorou um pouco menos que a transposição do Rio São Francisco para ficar pronto, foram trocados os pisos dos blocos, que antes eram de pedra e depois passaram a ser de uma cerâmica lisa que em dias de chuva simulava as Olimpíadas do Faustão, e em algum momento foi colocada uma rede no alto da quadra para evitar que a bola caisse fora do condôminio. Creio que compraram uma rede usada, pois ela tinha alguns furos e a bola acabava ficando presa no alto sempre que alguém dava um chutão para cima.

Outra brincadeira comum entre as crianças do Sargento Wolf eram as guerras com arminha de balão. A arminha de balão é feita com um cano de pvc cortado e um balão. Para o balão ficar bem preso ao cano é necessário passar uma fita isolante ou silver tape envolta do cano. Esse procedimento acaba servindo também para dar um acabamento estético à arminha de balão, emulando um instrumento criado em um presídio. Para melhorar a arminha de balão é possível ainda colocar um outro cano de pvc, menor, em cima, que serve de mira — na prática não servia de nada pois a força do vento sempre desvia a direção das balas — e outro cano na transversal, para ficar mais fácil de segurar. Alguns meninos mais preciosistas — eu me incluia nessa turma — compravam um binóculo vagabundo, retiravam um de seus telescópios e o prendiam ao cano principal. Esses em geral eram os mais estúpidos e mimados. Para atirar usavamos em geral feijão, apesar de que o ideial era semente de mamona.

Exemplar de arminhão de balão encapado, com mira telescópica e cabo de apoio — Foto: Google Images

Com as arminhas de balão promovíamos verdadeiros confrontos no bloco. Talvez não tão sangrentos quanto aqueles vivenciados pelo Sargeto Wolff com dois “f”, mas com casualidades graves de senhoras desavisadas, que vez ou outra acabavam tomando um balaço de feijão nas costas. Também era comum fazermos confrontos contra os meninos do conjunto em frente, inviabilizando a passagem pela viela ou pela rua de acesso que separava os blocos, ou brincar de polícia e ladrão, onde quem era polícia podia usar a bicicleta para ir atrás e balear quem era ladrão. Quem nunca tomou um tiro de armina de balão a menos de 2 metros, pense na dor de uma daquelas estilingadas com elástico bem na nuca ou na orelha. Agora troque o elástico por um balão com um feijão dentro.

O Tadeu nunca brincou conosco de arminha de feijão. Na verdade, creio que uma vez ele acabou tomando um tiro de um feijão desavisado quando entrava com sua mãe na portaria do bloco B, onde morava. Na verdade, talvez o tiro tenha sido em sua mãe, pois lembro de ve-lâ gritar e arrastar o menino que tinha dado o infeliz tiro até a portaria para interfonar para sua mãe. Enfim, nunca saberei de fato. Lembro apenas que esse menino ficou um tempo sem poder descer. Talvez seja por isso que o Tadeu não pudesse brincar conosco no bloco.

Avenida central do Guará II em 1992. À esquerda é possível ver o Sargento Wolf. Algumas crianças achavam que por conta dos tijolinhos vermelhos que revestiam o prédio o Sargento Wolf estava eternamente em construção —Foto: Histórias de Brasília

O Guará

O Guará é um bairro de Brasília, ou mais oficialmente uma região administrativa do Disitro Federal, divido em duas partes, hoje separadas pelo trilho do metrô que segue do ParkShopping até Águas Claras. De um lado, ao norte, fica o Guará I. Do outro, ao sul, o Guará II. O Guará I é composto em grande parte por casas baixas e germinadas. Algumas quadras possuem apartamentos baixos, de 3 andares, e no meio de todas há uma pracinha e um ponto de drogas. No Guará I surgiu o lanche chamado bomba. No Guará I também havia — ainda existe — o único McDonalds do Guará. Cheguei a morar por cerca de 2 anos no Guará I, não sei em que quadra, e logo me mudei para o Guará II. O Guará I foi construído no esquema de multirões, realizados por funcionários da Novocap, com os futuros moradores apoiando na construção de suas casas e até de parte de urbanização. Até hoje o Guará I tem um clima de interior e, em geral, uma população mais velha.

Saduíche Bomba clássico: salsicha, queijo, presunto, bacon, hambuguer e ovo, tudo dobrado — Foto: Radar Ocidental

Já o Guará II é um bairro mais recente. Composto tanto por prédios, que acompanham sua via central, quanto por casas também germinadas, nas quadras internas do bairro. No Guará II há mais equipamentos públicos, como o CAVE, uma quadra de futsal coberta onde já joguei bola várias vezes e onde aconteciam os principais shows do Guará, um posto de saúde, uma pista de kart, uma pista de skate e a Feira do Guará, onde fui de bicicleta inúmeras vezes comprar cd de jogo para computador ou alguma outra coisa que estava na moda e certamente encontraria alí uma versão pirata.

Em alguns lugares, especialmente fora do Brasil, a qualidade de um bairro é determinada pela qualidade de sua escola pública. No Guará II, a qualidade de uma quadra era determinada pela qualidade de sua banca de jornal. Na minha época, a melhor disparada era a da QE 28. Alí vendia de tudo, inclusive e mais importante as figurinhas dos albuns de futebol do campeonato brasileiro. Vendia também absolutamente todas as revistas disponíveis no mercado brasileiro, além de artigos de papelaria, e tudo mais que estava na moda entre as crianças. Quando o skate de dedo chegou ao Brasil, creio que a banca da 28 foi a primeira a vender.

Banca da QE 28 do Guará II — Foto: Super Amarelas

Existia uma certa rivalidade entre os moradores do Guará I e do Guará II. Naquela época as gangues estavam na moda. Até onde eu sabia, pelos relatos dos meninos mais velhos, as mais periogas eram do Guará. Em especial a dos meninos que estudavam no Centrão, no Guará II. No bloco haviam alguns meninos mais velhos que estudavam no Centrão e o que diziam era que eles vendiam maconha. As brigas entre as gangues eram constantes e vez ou outra morria um de facada.

No bloco as brigas também eram constantes. Existia uma hierarquia da briga e eu estava bem na rabeira. O único que eu batia com tranquilidade era o Peidinho. Talvez por isso eu brigasse tanto com ele. Depois, tinha o Vinícius, que eu até conseguia bater, mas ele sempre brigava sujo, mordendo ou beliscando com umas unhas de tocador de violão 7 cordas, e eu acaba pedindo para parar. Próximo a minha idade tinha outro menino que sempre me batia. Talvez por isso ele brigasse tanto comigo. Dizem que a gente sempre se lembra de quem nos bate, mas nunca de quem nós batemos. Não é meu caso. Não lembro o nome do menino que sempre me batia, mas apenas que ele era bom de briga e estava sempre de mal humor. Já do Peidinho, que eu batia com tranquilidade, me lembro bem.

Com o Tadeu eu nunca briguei. Nem de luta, nem com palavras. Apesar de forte, acho que o Tadeu era tranquilo. Nunca brigava com ninguém do bloco. Não sei se por desinterese ou falta de oportunidade.

Foto em preto e branco de um barbeiro sem relação com os cabelereiros mencionados no capítulo — Foto: Jornalisno na Web

Tião e Mary

No bloco todos tinham um apelido. O Pedro era Peidinho. O Guilherme, Bacalhau. O Petrônio era Petrônio mesmo, nome que por si só já é um apelido. O Nezildo era o Nenoninosvaldo. Tinha um que o apelido era milho. O nome desse eu não lembro. Lembro apenas que o milho não gostava de seu apelido.

Meu apelido era Johnny Mac. Johnny porque meu cabelo era grande, como o cabelo do Johnny Bravo. A parte do Mac eu nunca soube o motivo. Creio era apenas uma palavra que lembrava um nome em inglês e que, por sonoridade, combinava com Johnny. Algo como um sobreapelido. Nunca me incomodei muito com o apelido Johnny Mac. Meu cabelo se assemelhava mais a um ninho de João de Barro que ao cabelo loiro e com gel do Johnny Bravo e de resto eu estava mais para Suzy que para Johnny. Por sorte ninguém tinha percebido isso e meu apelido acabou saindo bem leve considerando meu potêncial à época para apelidos humilhantes.

Johnny Bravo e Suzy. Personagens de um desenho no Cartoon Network — Foto: Wikipedia

Meu cabelo era realmente grande e crescia em uma velocidade sobrenatural, o que me obrigava a ir no salão quase quinzenalmente. Como eu tinha orelhas imensas, cada uma pesando duas arrobas e projetadas quase que como um freio aerodinâmico — minhas orelhas eram tão grandes e de abano que quando eu corria, escutava alto o barulho do vento — , eu odiava cortar o cabelo. Quanto maior meu cabelo, mais escondidas minhas orelhas ficavam. Sempre então que ia no cabeleleiro, na maioria das vezes obrigado pelos meus pais, pedia para cortar bem pouco. O cabeleleiro, com pena ou constragimento de ver minhas orelhas imensas completamente expostas, acabava acatando meu pedido, mesmo com ordens contrárias de meu pai ou minha mãe. Na verdade, talvez estivesse apenas pensando apenas em ganhar mais, considerando que quanto menos ele cortasse menos tempo ia gastar no serviço e mais vezes eu iria cortar o cabelo. Enfim, não me importa muito. A questão é que eu passei minha infância preso em um ciclo sem fim e constante de idas ao cabeleleiro.

O salão que eu frequentava dependia principalmente de quem me levava. Lembro que no princípio de tudo eu ia sempre com minha mãe ao cabeleleiro, para cortar o meu cabelo e as vezes para acompanha-lá, que estava sempre fazendo chapinha. Durante décadas, e talvez até hoje, minha mãe frequentou o Salão da Mary. O Salão da Mary já passou por cerca de 15 ou 20 endereços distintos em Brasília, o que me leva a crer que a Mary tinha algum problema com seus locadores. Lembro que a Mary trocava cheque pagando juros de 10% ao mês e talvez estaja aí o fruto de sua instabilidade imobiliária. Já cortei cabelo em boa parte desses 15 ou 20 endereços, mas o que me lembro melhor era o pequeno salão no primeiro andar de um prédio comercial, na QE 30 do Guará II. Minha mãe passou uma parte significativa de sua vida alí. Eu também.

O Salão da Mary era um verdeiro empreendimento a ser estudado pelo SEBRAE e que seguia com determinação a lógica de diversificação completa de seu portfólio de produtos. Além dos serviços comuns de um salão, o Salão da Mary funcionava também como um brexo, com algumas araras de roupas expostas (a maior parte das próprias clientes do salão), uma revenda de produtos de beleza, MaryK, Avon, Natura e Carnê do Bau, uma factoring de cheques sem fundo, um ponto de agiotagem, onde os agiotas e suas vítimas eram as próprias clientes e funcionárias do salão, uma rede internacional de fofoca, conectada com outros salões dentro e fora do Guará, um consultório médico clandestino, com emissão de receitas de remédios tarja preta por parte de clientes supostamente médicas, e uma Corte de Justiça, com julgamentos sumários sendo emitidos a cada instante. Poucas coisas não podiam ser resolvidas no Salão da Mary, sendo a Mary uma versão feminina do Augustinho Carrara brasilience. Hoje entendo um pouco melhor o porque minha mãe ia tanto lá.

Prédio onde ficava o Salão da Mary, na QE 30 do Guará. Hoje a sala é ocupado por um tal de João cabeleleiro — Foto: Google Street View

Após alguns anos frenquentando o salão com minha mãe, meu pai resolveu tomar a dianteira nessa atividade rotineira. Creio que menos por prazer em me levar para cortar o cabelo e mais por medo de eu crescer tendo como referência o ambiente feminino do salão da minha mãe e “virar viado”. O local escolhido para eu ter um tipo de introdução à masculinidade clássica foi o salão que meu pai já frequentava há um tempo, o Salão Internacional, na praça do DI em Taguatinga.

O Salão Internacional era mais comumente conhecido por Salão do Tião. Eu não gostova muito do Salão da Mary, nem tanto pelo ambiente, mas por me sentir um pouco deslocado alí. Ninguém me dava uma atenção muito sincera e o único entreterimento além da fofoca, os julgamentos e as negociatas eram revistas de Caras e Tititi ou algum programa da Sonya Abrãao que passava na TV. No Tião, pelo contrário, meu cabelo era cortado em uma cadeira em formato de carro e todas as revistas eram Playboy ou SeteRodas. Eu gostava da SeteRodas. Gostava também de ouvir as conversas de meu pai com o Tião, sobre futebol ou sobre alguém que tinha ficado rico, e ver a corrida de Fórmula 1 que muito provavelmente estaria passando na TV.

Lembro que o Tadeu tinha um cabelo liso, quase loiro, bem diferente do meu. Creio que nunca vi o Tadeu de cabelo grande. Em compensação, vez ou outra que eu via o Tadeu ele estava com o cabelo cortado em forma de cuia. Talvez o Tadeu cortasse o cabelo em casa e nunca tenha ido em um salão de cabelereiros como eu. Também diferente de mim, lembro que o Tadeu não tinha um apelido. Na verdade talvez até tinha, mas realmente não consigo me lembrar agora.

Reza a lenda que o Tio Patinhos ganhou sua fortuna ao atacar e invadir uma tribo no continente Africano com um exército de cortadores de grama, a fim de estabelecer uma colônia de exploração de diamantes. Foto: Disney

O Tio Patinhas

Minha primeiro escola foi o Centro Infantil Tio Patinhas. O Tio Patinhas ficava ao lado da igreja onde fiz catequese e onde quebrei um dente em uma das colunas neoclássicas do pórtico de entrada, bricando de queda de braço com o Nezildo. O Tio Patinhas é também um pato multimilionário e avarento, cuja maior diversão eh mergulhar em seu cofre de dinheiro, sem gastar uma moeda. Não sei se meus pais me colocaram no Tio Patinhas esperando que os valores da escola tivessem alguma coisa a ver com o personagem que dava origem ao seu nome. Prefiro acreditar que me colocaram lá porque era uma escola em conta e bem perto do bloco.

Coluna da igreja onde eu quebrei meu dente brincando de queda de braço. A coluna continua lá, intacta.— Google Images

No Tio Patinhas eu aprendi a ler, a escrever e a fingir que estava doente para matar aula. Também aprendi o que é passar um recreio sem amigos e a assistir calado e com inveja um menino ser bajulado por ser mais rico e mais bonito.

Na verdade talvez não tenha aprendido a ler e escrever tão bem, pois quando mudei de escola, na 1ª série, a coordenadora do novo colégio recomendou que eu fizesse um curso particular de caligrafia, pois minha letra era ilegível mesmo para os padrões de uma criança de 6 anos. Fiz esse curso de caligrafia que hoje, pensando bem, podia ser apenas um golpe da coordenadora, que mantinha algum tipo de acordo espúrio com a senhora da caligrafia.

Meus únicos amigos no Tio Patinhas eram o Tiago, com ‘i’ e portanto meu quase xará, e um outro menino ruivo que parecia muito o Dennys do filme “Os pimentinhas”. Digo que eles eram meus únicos amigos, mas não tenho certeza se ele também me consideravam como amigo. O Dennys e o Tiago eram já amigos de antes da escola, provavelmennte seus pais eram amigos, e não tinham necessidade e nem muita vontade de incorporar uma nova pessoa à sua relação. Posso dizer que eu fazia companhia para o Dennys e o Tiago. Porém, sempre que tinha trabalho em dupla, por exemplo, eu ficava sozinho. Eles não me convidavam para visitar suas casas e quando tinha aniversário de um dos dois na escola, eu não podia ficar atrás da mesa do bolo junto com eles.

Na minha turma tinha também um menino chamado Leonardo. O Leonardo era o que mais se encaixava no padrão de uma criança bonita de 6 anos. Seu pai era dentista da dona da escola e creio que não cobrava as consultas, pois todas as professoras e, em especial, a Tia Ruth, dona da escola, bajulavam o filho da puta. O Leonardo morava em um prédio que fica entre o Sargento Wolf e o Tio Patinhas, um prédio com varanda e revestido de pastilhas, o que na época era sinônimo de coisa boa. Eu passava todos os dias em frente ao seu prédio, na ida para escola, e tentava adivinhar em qual apartamento morava. Não por curiosidade, mas por inveja mesmo. Em frente ao prédio tinha uma cerca viva repleta de flores. A cada dia que eu passava por alí, arrancava uma flor, com o objetivo de algum dia acabar com todas as flores da cerca. Lembro que em um desses dias levei uma das flores arrancadas para minha professora. Ela agradeceu, falou que a flor era linda, e perguntou se não era igual aquelas que tinham na cerca viva do prédio do Leonardo.

Prédio do Leonardo. Pelo jeito consegui arrancar todas as flores da cerca, que hoje é mais baixa que antigamente. Ou talvez ela apenas parecesse alta da minha perspectiva de criança — Google Street View

Um do bloco que estudava no Tio Patinhas era o milho. Tenho até uma foto com o milho, em algum dia de comemoração da escola, sentado em um daqueles brinquedos de praça em que o principal objetivo é se machucar girando o mais rápido possível até algum colega sair voando para fora. Os brinquedos do Tio Patinhas eram todos brinquedos de praça, o que me leva a crer que a Tia Ruth fez um puxadinho e incorporou um parquinho público que ficava ao lado do Tio Patinhas. Não lembro porque, mas eu não era muito amigo do milho na escola. Acho que ele era de outra turma. Ou talvez tinha medo que eu falasse seu apelido para os meninos da escola e por isso mantinha certa distância de mim.

Já o Tadeu não estudava no Tio Patinhas. Seria incrível se ele estudasse por lá. O Tadeu era acima de tudo um ótimo amigo e certamente teria me tirado do ostracismo no qual eu passava meus dias na escola. Infelizmente, não foi o caso. Não me lembro de onde o Tadeu estudava ou se ia para a escola antes da 1ª série. Nessa época não falávamos sobre escola. Contudo, penso hoje que deveria ter perguntado e pedido para minha mãe me colocar na mesma escola que o Tadeu. Assim eu teria uma companhia para os trabalhos em dupla e talvez tivesse construídos mais memórias com esse velho amigo que hoje tão pouco me recordo.

Do Tio Patinhas lembro realmente pouca coisa, tirando o dia que o Dennys e o Tiago pegaram catapora — eu era tão amigo dos dois, que nem a catapora eu peguei também — e eu tive tive que passar umas 2 semanas sozinho no recreio e sem companhia sequer para os trabalhos em trio. Lembro também do dia, quando eu já tinha uns 12 anos e já havia saído do Tio Patinhas há muito tempo, que a Tia Ruth, dona da escola, ligou na minha casa para me convidar para uma festa de ex-alunos. Agradeci o convite e disse que estava doente. Não tenho certeza, mas talvez eu até estivesse mesmo.

O dia que um homem pisou na lua — Foto: Istoé

O que eu queria ser quando eu crescesse

Uma das minhas maiores curiosidades na vida é saber o que Tadeu se tornou depois de crescer. Quando eramos amigos não tinhamos idade suficiente para querer ser outra coisa que não jogador de futebol. Um ou outro, um pouco mais pragmático, dizia querer ser goleiro. Mas para a maioria mesmo, incluindo eu e acho que o Tadeu, o objetivo era ser jogador de futebol.

Um pouco mais velho fui descobrindo outros gostos e vocações. Na verdade acho que apenas alguns gostos mesmo, pois vocação ainda não descobri nenhuma. O primeiro deles foi ser piloto de avião. Na verdade, a princípio gostaria de ser astronauta, mas meu pai me informou que não existiam astronautas brasileiros. Acabei então me resignando à aviação comercial.

Eu gostava muito de avião. Gostava tanto que comprava uma revista chamada Avião Revue e enchia o saco dos meus pais para ir na feira do paraguay comprar aviões de miniatura. Eu sabia o nome de várias partes e instrumentos dos aviões — inclusive os flaps, que descobri ter um efeito parecido com de minhas orelhas — conhecia os diferentes modelos em circulação e meu jogo favorito se chamava Airline Tycoon. No Airline Tycoon o objetivo não era pilotar aviões, mas ser dono e gerenciar uma companhia área. Isso me levou para uma segunda vontade que era não apenas de pilotar avião, mas juntar dinheiro para comprar um pequeno avião bimotor, começar uma companhia de taxi áreo e ficar rico construíndo uma grande empresa de aviação executiva.

No Airline Tycoon o objetivo era comprar aviões velhos e fazê-los voar com o mínimo de manutenção, sabotar os oponentes explodindo a turbina de seus aviões em vôo, subornar o mêcanico da oficina de aviões com uma garrafa de whisky para ele fazer um preço camarada e fofocar com o dono do bar do aeroporto, para pegar dicas sobre seus rivais — Foto: Steam

Em algum momento deixei a aviação de lado e passei a querer me tornar arquiteto. Para ser arquiteto era preciso saber desenhar. Na minha cabeça de criança, para saber desenhar era preciso aprender a desenhar. Pedi então aos meus pais que me colocassem em uma aula de desenho. Lembro do meu pai dizer que desenho não se aprendia, ou sabia ou não sabia, mas ainda assim minha mãe me colocou em uma escola de desenho lá na no Guará. Fiz aula de desenho por alguns meses ou talvez até 1 ano, em uma escola com meninos e meninas mais ou menos da minha idade e que pareciam estar em algum tipo de programa de residência artística, pois faziam desenhos inacreditáveis. Acabei não aprendendo muita coisa, como meu pai já dizia, e juntando ao fato de que arquiteto era profissão de mulher, segundo também meu pai já dizia, acabei desistinto dessa segunda carreira.

Eu não era muito bom em dar continuidade em minhas ambições de criança. Especialmente quando eu não manifestava qualquer talento e nem tinha muito retorno positivo. Como já mencionei, no prinicípio quis ser jogador de futebol, mas para isso era preciso ser bom de bola. Em algum momento quis ser escritor, mas descobri que para isso era preciso nascer rico ou filho de artista. Em outro quis ser comediante, mas também acabei desistindo quando contei para meus pais e eles me responderam que para ser comediante era preciso ser engraçado.

Em algum momento, quase na época do vestibular, decidi que queria estudar economia e, por uma questão de timing ou azar, essa acabou sendo a escolha definitiva. Eu estudava em uma boa escola, nao tinha qualquer outra obrigação além da boa escola e, portanto, acabei passando no vestibular. Se eu tivesse mais algum tempo para tomar essa decisão ou se não tivesse passado de primeira, certamente teria desistido da economia. Talvez eu tivesse retomado o sonho da companhia área. Ou talvez tivesse apenas inventado uma coisa nova.

25 de Março, em São Paulo — Foto: Segredos do Mundo

Meu Game Boy roubado

Por volta de 1998 o Pokemon estava chegando no Brasil. Junto com o desenho, veio também o Game Boy e o jogo do pokemon para Game Boy. Alguns anos depois, em uma viagem a trabalho para São Paulo, minha mãe comprou de presente um Game Boy Collor, daqueles de carcaça transparente, com um cartucho de Pokemon Yellow. Lembo da minha mãe comentar que tinha comprado o Game Boy na 25 de março, talvez na Galeria Pajé ou algum outro lugar de eletrônicos contrabandeados. De qualquer forma o Game Boy era perfeito. Sem dúvidas e de longe o melhor presente que eu já ganhei na vida. O único problema era que o Pokemon Yellow era em japonês, o que acabou me rendendo alguma dor de cabeça.

Passei cerca de 1 mês, incluindo uma viagem de carro de 8 horas para Belo Horizonte (ida e volta), tentando passar de Veridian para Pewter. Era impossível entender as intruções de um senhor que ficava na saída de Veridian, que dizia em japonês para pegar alguma coisa em algum lugar e levar de volta para o professor Carvalho em Pallet. Minha situação era tão dramática que meu pikachu chegou quase no level 30 matando apenas ratata level 3. Quando finalmente cheguei a Pweter, após tentar absolutamente todas as possibilidades de combinação de ações dentro do jogo, consegui matar o Onix do ginásio do Brook apenas com thunderbolt do meu pikachu puto.

Diálogo inicial do Pokemon Yellow em Japonês — Google Images

Eu amava aquele Game Boy. Tive outros jogos que me dediquei com quase tanta intensidade quanto o Pokemon Yellow. Talvez o principal tenha sido Mario Tennis, que era algo como um RPG de tênnis. Você podia andar livremente por uma escola de tênnis, participar de treinos e campeonatos, desafiar os colegas de escola, comprar raquetes e equipamentos novos e ir melhorando suas habilidades de jogador de tênnis com os pontos que ganhava ao subir de level. Fui jogar tênnis de verdade na minha infância lá para os 14 anos, mas tenho certeza que o Mario Tênnis era muito mais divertido.

Infelizmente, a felicidade do Game Boy não durou muito. Eu era o único menino do bloco que tinha um Game Boy, o que por si só é um grande problema e risco. Infelizmente, com uns 9 anos, eu não tinha muita dimensão disso. Algum dia uns amigos se convidaram para ir na minha casa, entre eles o Vinícius e o Peidinho, se não me engano. Eu devia ter desconfiado, mas sempre tive uma tendência a ser trouxa em matéria de furto. O resultado é que depois disso não achei o Game Boy. Não desconfiei imediamente deles, achei apenas que tivesse perdido o Game Boy. Fiquei semanas procurando, em cada canto da casa, sem que meus pais percebessem. Até rezei para Deus e me confessei com o padre na Igreja. Infelizmente Ele não me ajudou e o Game Boy não foi encotrado.

Falei que eu era o único a ter um Game Boy, mas talvez outro menino, que moravo logo embaixo de mim, também tivesse. A mãe dele era gerente do Pão de Açucar ou Carrefour do bairro, e ela tinha acesso a todos brinquedos com um desconto de não sei quantos porcento (durante muitos anos meu sonho foi que minha mãe se tornasse gerente do Pão de Açucar ou do Carrefour). Esse menino tinha absolutamente tudo, incluindo uma coleção de Lego de dar inveja na LegoLandia. Ele tinha tanta coisa que não podia brincar com as outras crianças do bloco. A entrada de seu apartamento tinha até uma grande de proteção no corredor de acesso, que poucos outros apartementos também tinham. Na época eu achava que era para proteger seus brinquedos. Esqueci o nome desse menino. Talvez Rafael. Lembro apenas que ele raramente saia de casa. Seja por risco de furto ou por falta de necessidade mesmo, considerando que já tinha todos brinquedos que precissase alí, à sua disposição.

Voltando ao meu Game Boy, um pouco mais tarde aconteceu uma situação estranha, em que passei a considerar a possibilidade de furto. Fui na casa do Peidinho com outro amigo do bloco. O Peidinho não queria nos deixar entrar, o que não era comum. Dizia que estava sozinho, fazendo dever de casa ou algo do tipo. Acabamos forçando a entrada, pois o Peidinho não impunha muito respeito, e fomos para seu quarto jogar video game. O Peidinho tinha um Nintendo 64, o que era o melhor video game do bloco, e sempre íamos lá para jogar. De repente, notamos algo estranho no bau de brinquedos do Peidinho e encontramos o Vinicius lá dentro, escondido feito um rato. Na hora não relacionei uma coisa a outra, mas hoje percebo que provavelmente eles estavam jogando o Game Boy e achavam que eu tinho ido lá cobrar satisfação, pois sabia que eram eles que tinham pegado. Na hora apenas ri da cara do Vicínius e disse que ele era burro. Fui ligar os pontos só algum tempo depois, quando então falei para meus pais que meu Game Boy tinha sido roubado. Eles já estavam me questionando há algum tempo o porque eu tinha parado de jogar aquele brinquedo caro que haviam me dado. Não falei por quem, apenas que tinha sido roubado não sabia eu onde. Naquele ano fiquei de castigo no natal e acabei não ganhando presente.

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